Plágio é plágio
14.Mar.2003 |
Márcia, querida,
No início desta semana, tive a desagradável surpresa de ler metade de meu texto "Em nome do dólar", esquartejado em sete notas, transcrito na coluna que você assina com seu nome – Márcia Peltier – no Jornal do Brasil.
Hoje a surpresa foi um cadinho mais desagradável, quando você publicou isto:
Foi mal
Fiando-se nas informações de um velho conhecido, o empresário Sérgio Costa e Silva, que acabava de chegar de uma viagem ao Irã, esta coluna publicou, na terça-feira, uma série de notas alusivas à crise que tem o Iraque como epicentro.
No dia seguinte, ficou constatado que circulava na internet uma matéria, com as mesmíssimas informações e trechos idênticos, assinada pelo jornalista Pedro Doria.
Para piorar as coisas, sabe-se, agora, que a fonte de todas as informações é um artigo que circula na internet desde janeiro, escrito por Walter Clark – um estudante de comunicação americano – e desenvolvido com base em sua tese de pós-graduação.
A coluna pede desculpas aos leitores pelo escorregão.
É plágio, Márcia, vamos chamar pelo nome. Ninguém cobrou de você uma resposta, ou um pedido de desculpas. Ninguém a ameaçou com processo. Virou piada. Mas o texto publicado em sua coluna é meu. Eu o escrevi. Você surrupiou as frases.
Um jornalista depende de três coisas. Daquilo que ouve, daquilo que lê e da capacidade de contar num texto sua história. No fim das contas, nenhum jornalista é dono da informação. A profissão tem por objetivo justamente o contrário: o que fazemos é tornar informação pública. O que sobra ao jornalista, no fim das contas, é o texto, seu estilo.
O nascedouro
"Em nome do dólar" nasceu do toque de um amigo economista. Pautas surgem assim. Ele me dizia para prestar atenção na disputa entre euro e dólar a partir da transição do Iraque, que – você sabe – passou a vender seu petróleo na moeda européia. Tendo isto em mãos, fiz o que muito jornalista faz hoje em dia: fui no Google apurar.
Entre as muitas coisas que encontrei, estava lá o artigo, excelente, de William Clark. Mas estavam lá, também, coisas como o relatório público da Inteligência indiana a respeito da provável Guerra que, possivelmente, Clark também leu:
Nos anos 1970, não havia alternativa ao dólar. Em 1o de janeiro de 1999, a alternativa surgiu na forma do euro […] Então, em novembro de 2000, quando o euro estava 30% abaixo do dólar, o Iraque exigiu da ONU aprovação para que fosse pago em euros.
O texto é de dezembro de 2002, antecede em um mês ao Clark. Como o de Clark, é uma longa análise econômica da guerra. Mas a questão não começou a preocupar os especialistas em dezembro, com a proximidade da guerra. Veja o caso do artigo "Saddam riu por último", assinado em março de 2001 por Arjun Makhiaji, presidente do Instituto de Pesquisa em Energia e Meio-ambiente, nos EUA.
No último outono, em protesto contra a política dos EUA no Oriente Médio, o Iraque pediu à ONU permissão para fazer pagamentos em euros. Na seqüência, o Irã levantou a possibilidade de fazer o mesmo. Ambos os movimentos ensaiam uma mudança potencial na política de preços da OPEP. Estabelecer o preço do petróleo em euros, ao invés do dólar, poderia causar uma tremenda fuga do dólar.
Mas antes ainda de o Iraque conseguir a autorização da ONU, Steve Hickel, editor do site Gold Eagle, já analisava as potenciais conseqüências, em setembro de 2000.
O Iraque decidiu que não vai mais aceitar dólares por petróleo. Qual você acha que é o efeito disto no dólar e no euro? […] Na minha opinião, nós veremos o dólar comprando euros ao invés de petróleo diretamente. Isso vai reverter a atual relação euro-dólar.
Mas não só os analistas falavam disso; também estava no noticiário, como esta reportagem da Reuters, de 30 de outubro de 2000.
O embaixador do Iraque na ONU, Saeed Hasan, informou hoje que Bagdá vai esperar até o dia 6 de novembro, ao invés de fazer a substituição no dia 1o, conforme anunciado. O Iraque chamou o dólar de moeda dum "Estado inimigo". […] Os contratos para a importação, assim como para a venda de petróleo, estão numa conta em dólar na filial de Nova York do banco francês BNP-Paribas. Mais de 10 bilhões de dólares estão no banco.
A informação é pública, está espalhada pelo mundo a um clique do mouse de quem quiser buscá-la. Não se paga nada por isso. Após a publicação de "Em nome do dólar", o semanário britânico The Observer escreveu sobre o assunto. A ONG norte-americana Green House Peace Project soltou um release sobre o tema. Gilson Schwartz, na Folha de S. Paulo do último domingo,< ahref="http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi0903200306.htm"> voltou à questão. A disputa entre euro e dólar não é posse de ninguém, é um fato cada vez mais discutido.
O plágio
Do Aurélio:
Plagiar: V.t.d. 1. Assinar ou apresentar como seu obra (artística ou científica) de outrem. 2. Imitar trabalho alheio.
Meu artigo não é plágio do de William Clark, como você insinua sem ter lido Clark, porque muito da informação que listo não está no artigo dele. E a informação que ele usa e que eu também uso está em vários outros cantos da Internet.
A sua coluna é plágio da minha porque o texto é meu.
Vamos lá nota-a-nota.
Você escreve:
Em novembro de 2000, véspera da eleição presidencial nos EUA, o Iraque mudou a moeda com a qual operava suas vendas de petróleo: saiu o dólar, entrou o euro. Foram negociados US$ 10 bilhões de dólares, 15% do PIB iraquiano ou, 0,1% do PIB dos EUA. Em meados de 2001, Saddam trocou, de novo, por euros, US$ 10 bilhões. Parecia pirraça: o euro valia 82 centavos de dólar. Só que aí veio o 11 de Setembro, o fortalecimento da moeda européia e a operação acabou sendo muito lucrativa.
Eu escrevi:
No dia 6 de novembro de 2000, véspera da eleição presidencial nos EUA, o Iraque mudou a moeda com a qual operava suas vendas de petróleo: saiu o dólar, entrou o euro. […] O Iraque tinha bloqueados sob o olho vigilante da ONU, numa conta em Nova York, 10 bilhões de dólares, ou 15% de seu PIB – 0,1% do PIB norte-americano. A conversão das vendas futuras para o euro foi vista como uma pirraça sem sentido. […] Em meados de 2001, vendeu os 10 bilhões de dólares de reservas e trocou-os também por euros. Só que aí veio o 11 de setembro e uma de suas conseqüências foi o crescente fortalecimento da moeda européia. A operação de troca de moeda terminou sendo imensamente lucrativa.
Algumas informações estão no texto de Clark – a comparação com os PIBs respectivos, não. Ao contrário do que você escreveu, o Iraque só fez uma vez a troca dos 10 bilhões.
Você escreveu:
Todo dia são gastos 2 bilhões de dólares com o combustível. Nas previsões otimistas, há petróleo para mais um século. Um quarto do petróleo mundial é consumido pelos EUA: são 20 milhões de barris por dia, ao preço de US$ 28 o barril, em janeiro.
Eu escrevi:
Todo dia são gastos 2 bilhões de dólares com o combustível. Nas previsões mais otimistas, há petróleo para mais um século. Aí acaba. Um quarto disto é consumido pelos Estados Unidos apenas. […] Lá, são 20 milhões de barris por dia ao preço, em janeiro, de 28 dólares a unidade.
Nada disso está no texto de Clark, mas se você der um pulo no site do American Petroleum Institute e fuçar seus relatórios, encontrará dados que sejam mais recentes.
Você escreveu:
A balança comercial dos EUA, em fevereiro, ficou negativa em US$ 31,5 bilhões. E o maior negócio é o petróleo. Só que o país mais poderoso do mundo não controla quem o vende. Pelo menos, até agora.
Eu escrevi:
A balança comercial dos EUA é deficitária – só agora em fevereiro, ficou negativa na brincadeira de US$ 31,5 bilhões. […] De todos esses negócios, o petróleo é o maior – e os EUA não controlam quem o vende.
Clark trata do assunto mas com outros números.
Você escreveu:
No dia 12 de agosto de 2000, Saddam Hussein ofereceu ao presidente venezuelano Hugo Chávez um tour pelas ruas de Bagdá. Chávez era o primeiro chefe de Estado a visitar o Iraque desde o início das sanções da ONU. As imagens de Saddam ao volante, com o Chávez ao lado, fizeram a festa das tevês. O fato aconteceu quatro meses antes da posse de Bush.
Eu escrevi:
No dia 12 de agosto de 2000, um garboso Saddam Hussein ofereceu ao presidente venezuelano Hugo Chávez um tour guiado pelas ruas de Bagdá. Exatos quatro meses antes de a Suprema Corte decidir pela eleição da dupla Bush e Dick Cheney. Chávez era o primeiro chefe-de-estado a visitar o Iraque desde o início das sanções da ONU e as imagens de Saddam ao volante com o militar venezuelano no banco do carona fizeram a festa das tevês.
Clark nem cita o assunto.
Você escreveu:
Filiada à OPEP a Venezuela responde, nos últimos anos, por 13% a 15% do petróleo importado pelos EUA: 1,6 milhão de barris por dia. Com a crise política venezuelana, a companhia estatal de petróleo venezuelana, PDVSA, parou.
Eu escrevi:
Filiada à Organização dos Países Exportadores de Petróleo, OPEP, a Venezuela responde por uma conta que variou, nos últimos anos, de 13% a 15% do petróleo importado pelos EUA – 1,6 milhão de barris por dia. […] Quando a companhia estatal de petróleo PDVSA parou, os EUA viram-se sem ter de quem comprar.
Novamente, Clark não entra em detalhes a respeito do comércio petrolífero entre EUA e Venezuela.
Você escreveu:
Os EUA tiveram de comprar petróleo do Iraque, que tem a segunda maior reserva do mundo. Bush havia cortado as importações iraquianas desde sua posse. Em dezembro passado, os EUA compraram 925 mil barris por dia; agora, em janeiro, foram 1,15 bilhão. Pagaram em euros.
Eu escrevi:
[…] Bush havia cortado as importações do combustível iraquiano desde sua posse, […] Em dezembro, compraram 925.000 barris por dia; agora em janeiro, 1,15 bilhões. Pagaram em euros.
E você, Márcia, não pagou um tostão pelo texto. (Mas, pôxa, repetiu meu erro: era 1,15 milhão e não bilhões de barris.).
pdoria@nominimo.ibest.com.br
Para ler mais
Em nome do dólar
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