quarta-feira, janeiro 22, 2003

Fonte: BBCBrasil

Análise: o 'status', as ausências e os favoritos do Globo de Ouro

'Cidade de Deus' é um dos indicados ao prêmio




Ana Maria Bahiana, de Los Angeles

Todo ano, as pessoas se perguntam: como pode um prêmio como o Globo de Ouro ter assumido proporções quase míticas - meio oráculo de tendências futuras, meio acólito da láurea principal (o Oscar).

A resposta mais direta e simples é: sorte.

Nascido de maneira despretenciosa, como uma forma de jornalistas especializados em cinema prestarem um tributo aos seus favoritos anuais, o Globo de Ouro tem, ainda hoje, características quase provincianas.

O prêmio é escolhido por menos de 90 votantes e entregue em uma festa hollywoodiana à moda antiga, sem shows produzidos, mas com muita comida e bebida farta.

Posição estratégica

Por motivos da mais estrita simplificação, os fundadores da Associação de Imprensa Internacional de Hollywood decidiram colocar sua láurea, o Globo de Ouro, logo no início do ano, em janeiro.

Isto acabou posicionando o prêmio, estrategicamente, como o primeiro do que acaba sendo uma longa temporada de troféus que se estende até a primavera americana, culminando, é claro, com as estatuetas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.

Antes do Globo de Ouro, apenas as listas individuais de críticos ou grupos de críticos – que costumam ser tão variadas e divergentes quanto os gostos e inclinações estético-políticas de seus autores - são anunciadas.


Globo de Ouro abre temporada de prêmios
O prêmio da Associação de Imprensa Internacional de Hollywood é o fruto de um consenso de observadores da indústria que trazem consigo as preferências do mercado internacional, já que representam publicações de 55 países, com um público de leitores/espectadores em potencial de mais de 250 milhões de pessoas pelo mundo afora.

É o tipo de indicador que, nestes tempos, cada vez mais dependente dos mercados externos, Hollywood sonha noite e dia abraçar.

Com este status de pole position, o Globo de Ouro estabelece o campo de ação, o foco, os limites de cada safra.

As indicações do prêmio avisam para todos os demais que filmes, atores, atrizes, roteiristas e diretores merecem atenção a cada ano.

Ausências

Como todo prêmio, o Globo de Ouro tem sua dose de omissão e injustiça. Agora, por exemplo, clama aos céus a ausência de Spirited Away, a obra-prima de animação de Hazao Myiazaki que é a favorita para o Oscar da categora.

Essa omissão se explica, em parte, pelo fato de o Globo de Ouro não ter uma categoria específica para animação.

Plenamente injustificáveis são as ausências ou a reduzida presença de Far From Heaven, de Todd Haynes, e de O Americano Tranqüilo e Rabbit Proof Fence, de Philip Noyce.

Mas, fora isso, as indicações deste ano deixam claro um quadro escuro: mais uma vez, não há francos favoritos, e filmes sombrios, violentos e amargos disputam a liderança.

Chicago


Catherine Zeta Jones disputa prêmio de melhor atriz
Até mesmo um dos poucos francos favoritos – o musical Chicago, que provavelmente vai levar o Globo de Ouro de melhor filme na categoria comédia ou musical – é uma versão fiel do super-cínico musical da Broadway que lançou Bob Fosse e que, com verve e paetês, deixa a nu a cultura da celebridade, o vampirismo da mídia e a gloriosa ineficiência do sistema jurídico americano.

Chicago também pode render vitórias para Catherine Zeta Jones e Renee Zelwegger – que disputam o Globo de Ouro de melhor atriz em comédia ou musical – e Richard Gere – que, em um delicioso tour de force, canta, dança, sapeteia e atua, tudo muito bem.

Uma vitória deste porte para Chicago teria grande impacto na indústria, um ano depois da aclamação de Moulin Rouge: significaria que o musical, dado como extinto nos anos 70, está, na verdade, saudável, vivo e pronto para voltar como um gênero viável, adaptável às sensibilidades do século 21.

No setor drama, a disputa vai ser tripartite, entre Gangues de Nova York – o cri de coeur de Martin Scorsese sobre o parto sanguinolento da face urbana dos Estados Unidos --, The Hours – meditação de Stephen Daldry sobre o impacto do suicídio nas vidas dos que ficam – e As Duas Torres – a segunda parte da saga Senhor dos Anéis, em que Peter Jackson não mede esforços para mostrar que a batalha entre Bem e Mal é bem mais difícil e medonha do que pode supor a vã filosofia dos super-heríis.

Gangues de NY


Leonardo diCaprio e Daniel Day Lewis em Gangues
Carga pesada, como se vê - e Gangues leva meio corpo de vantagem, sendo - como foi - o último filme a ser exibido para os votantes, e o que neles deixou impacto mais profundo e demorado, tendo crescido em apreciadores à medida em que as semanas passavam.

Gangues pode dar a Daniel Day Lewis e Martin Scorsese os Globos de Ouro de ator em drama e diretor.

Entre os atores, Jack Nicholson, por About Schmidt, seria o principal adversário de Day Lewis. Entre as atrizes, a briga vai ser entre a escolada Meryl Streep, por The Hours, e Julianne Moore, por Far From Heaven.

Há uma sinergia natural e, é claro, fruto da mais absoluta coincidência, entre Gangues de Nova York e Cidade de Deus, que está entre os favoritos para o Globo de Ouro na categoria de melhor filme estrangeiro.

Cidade de Deus


Cidade de Deus disputa com Fale com Ela
Ambos são olhares ao mesmo tempo isentos e apaixonados sobre o lado mais horrendo da natureza humana: a violência casual que emerge como uma abundante erva daninha por entre as frestas de nosso urbano cimento armado.

Esta simetria temática pode ajudar muito o filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund, mas Cidade de Deus ainda tem pela frente um antagonista formidável: Fale com Ela, de Pedro Almodóvar.

Quem vai decidir a escolha será o pequeno bolsão de fãs de O Crime do Padro Amaro – quase todos jornalistas latino-americanos.

Optar pela herança hispânica ou pela solidariedade continental pode fazer toda a diferença do mundo. E, se insistirem no seu voto, é bem capaz de vermos um empate...


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