quarta-feira, janeiro 22, 2003

Uma eternidade de talento



Leo Martins


22.Jan.2003 | Eu estava aqui triste lendo sobre Al Hirschfeld, que, aos 99, sem fôlego pra tantas velinhas, nos deixou... e comecei a escrever só pra dividir a tristeza com mais alguém. Na verdade, não sei bem porque estou escrevendo, e não há mesmo muito de novo a dizer: é um capítulo, um longo capítulo da caricatura que permanecerá vivo nas pranchas e nas páginas de jornal, mas também sobretudo na memória daqueles cujos olhos viajaram naquelas curvas graciosas (com todo o respeito).

Pra mim, ficou ainda - e especialmente - a lembrança da noite de agosto de 2002 em que minha esposa, utilizando métodos quase lícitos se é que isso existe, descobriu para minha surpresa seu endereço e telefone e, desprezando minha timidez, me intimou a ligar pra Nova York e satisfazer meu desejo de longa data. Já muito nervoso, mãos trêmulas , fui atendido por um jovem, a quem perguntei por Mr.Hirschfeld. Esperei por alguns segundos até que uma voz feminina tomasse a dianteira na conversa e me bombardeasse com perguntas protocolares, bastante objetivas mas feitas de forma gentil e educada. Entre meu nome, idade (!), profissão e assunto da ligação, consegui numa breve pausa inserir uma informação que, acredito, mudou minha sorte até então ameaçada: "Minha senhora, eu estou ligando do Rio de Janeiro, Brasil... perdoe minha inconveniência, não pude resistir...". Daí tudo mudou: "Brasil? Eu sou a Sra. Hirschfeld, vou chamá-lo.".

Uma voz doce entrou na linha, e o tom quase angelical combinou bem com minha expectativa. O diálogo abaixo, é claro, está bem resumido.

- Então você mora no Brasil? Gosto muito desse lugar. As cores...
- Me desculpe por interrompê-lo em casa. Precisava muito dizer o quanto o admiro. Sou caricaturista e você, é claro, é um grande exemplo para mim.
- Eu também.

Ainda desnorteado pela resposta e já duvidando da minha proficiência na língua inglesa, ouvi a Sra. Hirschfeld, de uma extensão, me lembrar para falar mais alto "senão ele não ouve". Acatada a sugestão, a conversa foi pontuada pela memória prodigiosa de um homem que viveu um século do que só conhecemos por livros. Me perguntou sobre tudo o que se lembrava - e era muito - a respeito do Brasil. Lá pelas tantas, sacou um 'Menchi' da cachola que até eu demorei pra entender: era sobre Hermenegildo Sábat, 'Menchi' para os íntimos, grandessíssimo desenhista sul-americano que conhecera há muitas décadas passadas. "Você o conhece?", me perguntou. "Só o encontrei uma vez, em uma exposição aqui no Rio". "Se estiver com ele novamente, mande um abraço meu." como se houvesse pouco o tivesse visto e o tempo jamais lhe passasse.

Perguntei sobre a possibilidade de lhe enviar uma carta com alguns de meus desenhos e a resposta denotou todo o seu desprendimento e simplicidade: "gostaria muito que você o fizesse, mas devo ressaltar que aqui tudo se perde entre as dezenas de correspondências que chegam diariamente... por que você não vem pessoalmente?". Surpreendido, expliquei que o momento não era propício para que eu viajasse mas que faria o possível para, obviamente, aproveitar a oferta oportunamente. Prometi também desenhá-lo, mas o tempo passou e agora a caricatura já não é a mesma. Jamais será. Com 75 anos de colaboração quase ininterrupta para o “New York Times”, o homem que trouxe para os dias de hoje a mais pura tradição do desenho de imprensa da primeira metade do século XX se tornou, enfim, eterno. Destacando-se já na época em que havia mais ilustradores do que fotógrafos, Al Hirschfeld tornou-se uma lenda viva levando seu traço firme, elegante e imprevisível aos limites da simplicidade, capturando em linhas infalíveis a história do teatro americano, sua grande paixão. E nas páginas de teatro do New York Times os atores iniciantes, tanto quanto os grandes nomes, rezavam pela glória de serem reinventados por ele e, muitas vezes, ganharem daí a chance de alcançar novos patamares de sucesso. Não poucos já comentaram que Hirschfeld os descobrira entre tantos em cena em algum espetáculo da Broadway e isso alavancou suas carreiras. Fora do Times seus desenhos apareceram em muitos outros veículos, mas certamente com muito menos freqüência. Entre os anos 20 e 30, preocupado em dar um sentido social à sua arte, ofereceu litografias para a revista de linha comunista The New Masses, de graça. Mas certa vez, já preocupado com o rumo demasiadamente ideológico da publicação em detrimento da arte e também contrariado com a discussão em torno de uma das caricaturas produzidas, desistiu de misturar política com seu trabalho e comentou depois que desde então se tornou "mais próximo de Groucho Marx do que de Karl". E eram os irmãos Marx - sem Karl - que estavam sobre sua prancheta no último sábado, quando ainda trabalhava normalmente em seu estúdio.

Rabiscando pacientemente grandes pranchas de papel com tinta nanquim e bico-de-pena, sentado em sua famosa cadeira de barbeiro (sua segunda, já que a primeira acabou doada para o Smithsonian Museum), deve ter produzido bem mais que uns 10.000 trabalhos (chute meu), dos quais mais de 7.000 ainda existentes, atestados pela Margo Feiden Galleries que há um quarto de século representa o artista. Já se tornara um patrimônio nova-iorquino. Enlouqueceu muita gente escondendo o nome de sua filha Nina em cantos impensáveis dos desenhos e encontrar tantos 'Nina' quanto ele indicava à direita da assinatura tornou-se até mesmo exercício no treinamento de operadores de bombas dos aviões americanos na segunda guerra mundial. Como ele mesmo disse recentemente ao receber a notícia de que seria agraciado pelo presidente George W. Bush ainda este ano com a National Medal of Arts, "quando se vive tempo suficiente, acontece de tudo".

Aí, um dia aconteceu. Saiu da linha e se tornou eterno.


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