sábado, janeiro 04, 2003

Pedro Doria-Weblog-No Mínimo



Passagem



31.Dez.2002 | Este foi um ano de passagem. É como se não tivesse sido, um anti-clímax após o intenso 2001. Não é um ano que deixará lembranças, nada se concluiu nele, mas se deixou algo de bom foi que eliminou as certezas. Deixou claros os tons de cinza para quem passou os últimos tempos enxergando o planeta em preto e branco, bons e maus.

A Argentina, por exemplo, chegou ao fundo do poço mas teima em continuar respirando. Ainda está lá. E, no Natal, as pessoas foram às lojas e compraram presentes. Coisa boa sorrir depois da tempestade.

Ou a Venezuela. Aparece um militar populista que se diz de esquerda, um sujeito que tentou dar um golpe de Estado como Hugo Chávez, e depende de sua estabilidade a democracia na América do Sul. Se ele resistir à pressão, se eleito que foi pelo voto mantiver-se presidente, é porque vão bem o continente e suas instituições. Ferido, talvez. Mas noutros tempos era golpe certo.

E a inflação por aqui? Já não dorme um sono tão tranqüilo. Luís Inácio Lula da Silva foi eleito para mudar os rumos da economia do país e põe um banqueiro na presidência do Banco Central. Estará de todo errado? É esse mesmo o caminho? Os brasileiros assistem em suspenso, querendo com toda a fé acreditar sem a mínima idéia de como seguir em frente sem perder o que já conseguiram.

O governo maniqueísta dos Estados Unidos está a um passo de aprender uma dura lição e com ela carregar o mundo para uma crise talvez tão séria quanto a que antecedeu a Segunda Grande Guerra. Achou que podia escolher os conflitos que travaria. Depois do Afeganistão, viria o Iraque. Até fingiu não ver quando os russos jogaram num teatro em seu país um gás venenoso daquele tipo que acusam Saddam Hussein de produzir em segredo. (E Saddam deve produzí-los mesmo; quem é que não o faz? Nós provavelmente não, mas quem se importa com o gigante eternamente adormecido?) Mas então, às vésperas dum ataque a Bagdá, aparece a Coréia do Norte ensaiando uma corrida nuclear. Travar uma guerra no Oriente Médio é fácil. Mas uma com perigo atômico do lado da Coréia do Sul, Japão e China, essa é outra história. Apreensão é palavra leve demais para descrever quando basta um maluco com a chave na mão.

Nos mesmos EUA caiu o mito do empreendorismo norte-americano. Viu-se que as grandes empresas eram isso mesmo, antros de corrupção e ganância deslavada que só não puseram em xeque definitivo a economia mundial porque quem tinha dinheiro preferiu fechar discretamente os olhos.

Aliás, fechamos discretamente os olhos o tempo todo em 2002. Certas realidades são tão duras que para conduzir o cotidiano e sobreviver no mundo cão, só com uma pitada de hipocrisia. Lembra uma das vinhetas que Duda Mendonça preparou na construção da nova imagem do Partido dos Trabalhadores, aquela na qual a moça, saída duma festa animada, vê da janela do carro uma mãe de rua, bebê ao colo. Seu rosto fecha mas o de seus companheiros, não. O apresentador, da penumbra, explica que se você ainda se choca com isso, então você é um pouco PT. Bonito na tela, e bonito na festa popular que se seguiu à eleição do primeiro operário à presidência. Mas será realidade?

Quando Sérgio Buarque disse que o brasileiro era cordial, muita gente entendeu o lado cândido da coisa, sem perceber que somos uma gente que evita o conflito – e sem o conflito, problema sério não se resolve. Fugimos da briga criando uma alegoria para a desigualdade. Só que desta vez é o mundo todo que parece estar criando paliativos para fugir da realidade.

O caso das leis, por exemplo. A ciência e a tecnologia têm avançado tanto e ainda fingimos que leis resolvem os conflitos que ambas levantam. Brincamos, por exemplo, de discutir direitos autorais do ponto de vista legal – ou moral – como se música, cinema, literatura pudessem ainda ser protegidos assim. Se pode ser copiado e distribuído pela Internet, será. Mas em 2002 o Napster fechou e as gravadoras começaram a colocar proteções anti-cópias em seus CDs e seguimos fingindo que isso resolve. Deste fingimento, infelizmente, só resultará um agravamento do conflito. A resposta de como serão pagos os artistas continuará longe de ser alcançada.

E o cruel dessa história toda é que são ciência e tecnologia que estão por trás de nossos conflitos correntes, todos eles. A briga do copyright vira metáfora. Sem os confortos da tecnologia dos ricos, os pobres ficam mais pobres e tirar da idade média o mundo muçulamano é a única solução para o terror das Al-Qaedas da vida. Só que esta única solução, que requer uma injeção violenta de dinheiro e conhecimento naquele pedaço do mundo, é cara demais para o planeta em crise resolver. Daí o paliativo da guerra. Vamos fingir que resolve? Ao que tudo indica, vamos. A riqueza e o bem-estar ocidental de Israel – e por conseqüência o da Europa, dos EUA, até mesmo o nosso – continuarão intoleráveis pelo contraste.

Enquanto há o choque das civilizações, o ano fecha com um aspecto ainda mais sombrio de todo este caos. O clone. Na verdade, pouco importa se uma seita supersticiosa e primitiva como a dos Raelianos o produziu ou não, porque um clone humano nascerá nos próximos meses, dias. Desperta, pois, com insanidade equivalente a sanha legislativa de produzir um papel dizendo que não pode. Como se resolvesse. Porque, se é possível tecnologicamente, ele será feito. E se não discutirmos os porquês, continuarão sendo produzidos pequenos clones. Bebês, meu Deus.

É um processo anti-científico produzido pelo conhecimento científico. Cá neste weblog, não há espaço para mentalidade ludita. Os argumentos contra a clonagem humana são fundamentalmente morais. Será que deveríamos fugir da palavra? Talvez. Clones servem a dois propósitos. Um é narcisista, a vontade de criar um ser tal qual seu progenitor. De uma pobreza espiritual apavorante. O outro, talvez mais sincero, é a esperança de combater a morte dum ente querido. Mas com outra vivência, o clone poderá ser gordo, quando o original era magro; poderá ser violento, quando o original era pacífico. Terá outros anseios, outras idéias. Nem tudo o DNA decide. E aliada à frustração desta descoberta, um indivíduo fadado à neurose nascerá e, com ele, corre risco o que garantiu não apenas o sucesso do homem, mas o da vida: diversidade. Diferença.

2002 foi um ano de passagem porque os conflitos ficaram à mostra e, por enquanto, são tantos que preferimos não vê-los. Conflitos, no final, que mostram este pequeno detalhe da mente humana: medo da diferença. Intolerância. Nenhum foi resolvido. Fica para a conta de 2003.

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