quinta-feira, junho 19, 2003

Certeza e imbecilidade




“Tenho a certeza, mas a certeza é mentira.
Ter certeza é não estar vendo”
Fernando Pessoa



Certa vez, estava ouvindo uma palestra de um experiente espírita-kardecista. Ele falava sobre as estruturas perispirituais dos corpos dos Espíritos extraterrenos e da sua possibilidade de comunicação com os nossos médiuns da Terra. O assunto era mesmo estratosférico, mas, tratava-se de uma reunião interna, isto é, para pessoas já “iniciadas” nas obras kardequianas e na farta bibliografia do médium Chico Xavier.
Um aspecto da exposição despertou-me de minha vaga sonolência: como é que ele, o experiente expositor, tinha tanta certeza em tudo que dizia? Num primeiro momento, senti-me estúpido demais para questionar um “sábio” que falava com tanta convicção sobre os jupiterianos. Depois, pensei que ele deveria ter mais humildade diante dos “dados mediúnicos” e jamais transformar hipóteses e teses espiritualistas – reveladas por médiuns passíveis de erros - em certezas “científicas” ou religiosas. Passados alguns minutos, comecei a temê-lo e identificá-lo com os grandes problemas da humanidade, tais como as guerras, o fundamentalismo islâmico e o totalitarismo nazi-fascista e comunista.
Por que?
Nada mais anti-científico e ideológico do que a certeza. Todo o progresso científico da humanidade se deu a partir da dúvida, da incerteza, da negação do que era óbvio e aceito como correto. Sempre que nos fixamos nas certezas, abrimos oportunidade para toda a sorte de imbecilidade: dogmatismo, fanatismo religioso, cientificismo esclerosado, totalitarismos de esquerda e de direita. Todos esses monstros têm em comum o fato de partirem de certezas e fecharem as portas a toda e qualquer dúvida ou questionamento.
O suicida muçulmano do grupo Jihad (apoiado financeiramente pelo Iraque de Saddam, que agora pertence aos EUA) tem uma estúpida certeza de que vai para o céu e que sua opção de “mártir” é o passaporte. Assim como os comunistas tinham certeza – alguns ainda permanecem nela - que a ditadura do proletariado (Ah meu Deus!) é o melhor regime para o povo. Todos esses idiotas eram ou são pessoas de “convicções”. Cheios de certezas, espalham morte, dor e sofrimento por todo o mundo.
Não quero com isso cair no outro extremo, no relativismo antropológico radical, na fluidez moral, no vazio carente de verdades. Acho tal extremismo – a crise em torno da verdade – tão perigoso quanto o primeiro – as certezas imbecis. Na carta “Veritatis Esplendor”, o líder católico João Paulo II nos alerta, de forma inteligente:
“Perdida a idéia de uma verdade universal sobre o bem, cognoscível pela razão humana, mudou também inevitavelmente a concepção de consciência: esta deixa de ser considerada na sua realidade original, ou seja, como um ato da inteligência da pessoa, a quem cabe aplicar o conhecimento universal do bem numa determinada situação e exprimir assim um juízo sobre a conduta justa a eleger, aqui e agora; tende-se [hoje em dia] a conceber à consciência do indivíduo o privilégio de estabelecer autonomamente os critérios do bem e do mal e agir em conseqüência. Esta visão identifica-se com uma ética individualista...” (p.56, edições Paulinas)
As ações de Fernandinho Beira-Mar exemplificam essa “ética individualista” que o Papa critica na sua encíclica. É ele, um traficante violento, quem define o que é bom e mau ou justo e injusto. Coitados de nós que estamos mergulhados nessa pós-modernidade relativizadora e corruptora da verdade, causadora da anomia social, mas, paradoxalmente, incentivadora de certezas fanáticas e particularistas, fragmentárias, tais como a de Beira-Mar e seu bando.
Quando lia “Ficções do Interlúdio”, encontrei nos versos de Fernando Pessoa uma preocupação distinta. Enquanto João Paulo II está preocupado hoje com o desmoronar da verdade, o poeta mostrava-se preocupado com a imposição das verdades na forma de certezas totalitárias: certeza é mentira, é não estar vendo a realidade! Com isso, estamos todos sendo convidados pelo poeta – que ironia! - à uma postura de humildade diante dos fatos, idéias, crenças religiosas e ideologias políticas. Vivenciá-las - é claro, porque ninguém é neutro e nem defendo um ser asséptico e omisso - mas, sem aquele ar arrogante de senhores de tudo. Assim, as preocupações do Vaticano e de Fernando Pessoa são faces de uma mesma moeda onde, de um lado, apresenta-se o extremismo das certezas e, de outro, o extremismo relativista.
Acredito que se mantivermos em mente a hipótese do erro, iremos nos abrir para o novo, para transformações oportunas, para aquela realidade que se fecha diante dos olhos cegos dos que têm certezas totalitárias. Nossa saúde psíquica e nossa convivência social ganham qualidade quando deixamos de lado nossas arrogantes verdades inquestionáveis e nos abrimos para ouvirmos respeitosamente o Outro e, quem sabe, darmos razão a ele, porque ele pode estar mais iluminado pela Verdade do que nós mesmos. Isso deve ser feito sem abrirmos mão da razão e da verdade, mas, para preservá-las do engodo das certezas fechadas. É difícil, mas é um exercício maravilhoso. Afinal, nossa única certeza comum é que iremos morrer, então, para que brigarmos tanto?

Marcio Sales Saraiva

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