sexta-feira, julho 14, 2006

William Blake - O conciliador do céu e do inferno

Konstantin Gavros

A poesia talvez seja a manifestação estética que mais evidencia o quanto a arte é um dos melhores frutos da nossa libido, ou seja, de nossas pulsões sexuais.A poesia é a prova da disposição humana ? uma disposição, na maioria das vezes, inconsciente ? no sentido de superar os freios emocionais que nos são impostos desde a infância. Ela é uma eficiente resposta às amarras morais que revestem o homem com os andrajos da vergonha, do medo e da insegurança, impedindo-o de desenvolver-se sexualmente e condenando-o, dessa forma, a uma existência permeada de conflitos não resolvidos.Mas o inconsciente humano sempre encontrará uma forma de livrar-se das correntes impostas pela educação e pelos diversos outros condicionamentos que nos são impostos. Escondida em algum ponto do inconsciente, a energia sexual represada pelas convenções sociais acaba sempre por explodir ? na forma de arte ou, pior, na forma de um câncer ?, transformando a vitória da repressão em um frágil sucesso temporário. A lição de Freud não deve ser esquecida: o que foi reprimido não foi eliminado.Com razão, portanto, Michael Löwy e Robert Sayre[2], ao analisarem o romantismo, o definem como "a revolta da subjetividade e da afetividade reprimidas, canalizadas e deformadas".
Dentre os românticos, o mais polêmico deles, William Blake (1757 ? 1827)[iii], nos legou uma obra que não guarda apenas a característica de exaltar os valores da subjetividade, mas distila uma poderosa crítica ao capitalismo e à religião.Os estudiosos da obra de Blake certamente já detectaram as razões que o fizeram reorientar-se na direção da radicalidade, abandonando as temáticas quase pueris de Canções da inocência (1789) e abraçando o pensamento libertário de O casamento do céu e do inferno (1793) e de suas Canções da experiência (1794).Nestas últimas, encontramos a densa crítica à religião e aos moralismos apregoados por seus sacerdotes:

O Jardim do Amor

Eu fui ao Jardim do Amor,
E vi algo jamais avistado:No centro havia uma Capela,
Onde eu brincava no relvado.

Tinha os portões fechados, e "Proibido"
Era a legenda sobre a porta escrita.
Voltei-me então para o Jardim do Amor,
Que outrora dera tanta flor bonita,
E vi que estava cheio de sepulcros,
E muitas lápides em vez de flores;
E em negras vestes hediondas os Padres faziam rondas,
E atavam com nó espinhoso meus desejos e meu gozo.

A morte e a dor nascem da proibição, da censura e do impedimento de vivermos nossos desejos. Quando o corpo é tolhido em nome do espírito, restam apenas as pedras frias que recobrem um jardim outrora marcado pela beleza. O homem, alienado em sua própria carne, recorda um outro tempo, cujas marcas de liberdade e pleno prazer deixaram-lhe lembranças indeléveis. Na visão do poeta, a verdadeira religião, capaz de religar o homem ao seu estado original, está proibida àqueles que são puros de coração (como o próprio poeta-criança, que brinca, em seu sonho, no gramado).
Em outro poema, a cidade emerge em uma cena de destruição e infelicidade:
Londres

Em cada rua escriturada em que ando,
Onde o Tâmisa escriturado passa,
Eu nos rostos que encontro vou notando
Os sinais da doença e da desgraça.

Ouço nos gritos que os adultos dão,
E nos gritos de medo do inocente,
Em cada voz, em cada interdição,
As algemas forjadas pela mente.

Se o Limpa-chaminés acaso grita,
Assusta a Igreja escura pelos anos;
Se o soldado suspira de desdita,
O sangue mancha dos muros palacianos.

Mas o que mais à meia-noite é ouvido
É a rameira a lançar praga fatal,
Que estanca o pranto do recém-nascido
E empesteia a mortalha conjugal.

Não há beleza em meio às ruas destruídas pela lógica do capital. Vivendo em plena Revolução Industrial, William Blake denuncia a corrosão da cidade, na natureza e dos homens, todos estigmatizados pela pobreza e pela doença, sugados até a desesperança pelo trabalho e por leis injustas.Em Jerusalém (um de seus últimos livros), ele chama para si a tarefa profética de iluminar as mentes obscurecidas e viciadas pelas mentiras que a religião, o mercado e o Estado apregoam:
"Trêmulo permaneço dia e noite;
meus amigos ficam espantados.
Mas perdoam o meu divagar,
pois não posso afastar-me da grande tarefa!
A tarefa de abrir os Mundos Eternos,
de abrir a Visão Imortal
Do Homem para os Mundos Interiores de seu Pensamento:
para a Eternidade
Em contínua expansão no Seio de Deus: para a Imaginação Humana."

Somente a imaginação humana, somente o homem capaz de olhar livremente para o seu próprio interior poderá ser verdadeiramente livre. É o caminho na direção dessa liberdade que Blake traça em O casamento do céu e do inferno, ao inverter as polaridades dos dogmas apregoados pela religião e ao instaurar, por meio de uma poesia libertária, uma nova ordem, na qual a vida, a sociedade e a história são reinauguradas.Anárquico, o poeta estabelece uma dialética com a qual objetiva quebrar a lógica maniqueísta da religião cristã:
"Não há progresso sem Contrários.
Atração e Repulsão,
Razão e Energia,
Amor e Ódio
são necessários à existência Humana.
Desses contrários emana o que o religioso denomina Bem & Mal.
Bem é o passivo que obedece à Razão.
Mal, o ativo emanando Energia.
Bem é Céu.
Mal, Inferno."

O inferno torna-se, portanto, o verdadeiro céu. Para Blake, a "Energia é única vida, e provém do Corpo; e a Razão, o limite ou circunferência externa da Energia". O mal se transforma, assim, em bem, pois a "Energia é o Deleite Eterno".Não há mais tormentos. Carne e espírito estão refundidos em uma nova metafísica. O poeta condena os tímidos, os inseguros e os covardes que se recusam a enxergar a verdade:
"Quem refreia o desejo assim o faz porque o seu é fraco o suficiente para ser refreado;
e o refreador, ou razão, usurpa-lhe o lugar & governa o inapetente.
E, refreando-se, aos poucos se apassiva, até não ser mais que a sombra do desejo."
Na verdade, para Blake, Lúcifer não foi expulso do Paraíso, mas, na luta travada entre Razão e Energia, entre Bem e Mal, foi Deus o derrotado, "formando um céu com o que roubara do Abismo".Longe de ser um ateu, o poeta preconiza uma completa inversão de valores na relação do homem com a divindade. Ela não será mais castradora, mas incentivará o homem a descobrir suas potencialidades, sua energia adormecida ou refreada, sua verdade pessoal. A divindade, agora, anseia ardentemente que o homem mergulhe em seus sonhos e em suas vontades, a fim de redescobrir a centelha divina de que se esqueceu. Não só carne e espírito devem se reconciliar, mas o homem deve reencontrar, em sua carne, a luz do espírito; no sexo, a emanação perfeita da vontade divina; em seu próprio corpo, o fulgor divino que queima suas entranhas.Tudo o que a religião dividiu em forças antagônicas, a poesia, agora, refunde:
"O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria.
Prudência é uma rica, feia e velha donzela cortejada pela Impotência.
Aquele que deseja e não age engendra a peste.
(...)
Prisões se constroem com pedras da Lei;
Bordéis, com tijolos da Religião.
(...)
Assim como a lagarta escolhe as mais belas folhas para pôr seus ovos,
o sacerdote lança sua maldição sobre as alegrias mais belas."

Inquieto e iconoclástico, William Blake quer resgatar a percepção original da realidade ? "Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem tal como é, infinito" ? e destituir nossa relação com o real das sucessivas camadas de mentiras que nos foram impingidas e que nos cegam. Esse precursor de Nietzsche diria que "tudo o que vive é sagrado". De fato, em sua supra-religião, a alegria, o prazer e todas as manifestações da sexualidade deixam de ser malditas, reconquistando para nós, animais humanos, a integridade que a absurda idéia de pecado um dia nos arrancou.
Konstantin Gavros é escritor. Assina, diariamente, o blog A verdade é o sexo, o sexo a verdade (http://sexoverdade.blogspot.com/).

[2] Revolta e melancolia (o romantismo na contramão da modernidade), Editora Vozes, RJ, 1995.
[3] Os trechos de William Blake utilizados neste texto foram retirados de: - Poesia e prosa selecionadas, Editora Nova Alexandria, SP, 1993. - O matrimônio do céu e do inferno, Editora Iluminuras, SP, 2001, 4ª edição, 2001.

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