sexta-feira, dezembro 27, 2002

Fonte:A Peitica Cavilosa

A La Ursa quer Dinheiro



-Mataram a La Ursa, gritou Adelino. E, de fato, a La Ursa estava estendida no asfalto. De um buraco na máscara tosca que tentava imitar a ferocidade de um animal escorria um filete avermelhado. Esvaia-se o sangue de Seu Nôzinho, assassinado com uma bala bem no meio dos cornos.


Antes de morrer de forma tão brusca, Antenor dos Santos Filho era um sujeito bem quisto pelos vizinhos. Morava e trabalhava na Madalena. Tinha um box no mercado público do bairro, onde ganhava a vida vendendo ração de passarinho, gaiolas e os próprios bichinhos alados. Viúvo desde os sessenta anos, aos setenta e poucos já não dividia com ninguém a pequena casa que habitava. Os filhos, crescidos, já tinham suas famílias para cuidar. Seu Nôzinho, porém, não se sentia sozinho. Gozava da companhia dos amigos e de saúde para labutar.

Durante os dias de carnaval, então, Seu Nôzinho era ainda mais requisitado pelos colegas da vizinhança. Era dele a iniciativa de organizar a folia na rua em que morava. No Sábado de Zé Pereira, contratava uma orquestra, comprava muita cerveja e, quando já estava "calibrado", botava uma fantasia de La Ursa. Dançava a vontade coberto por um traje marrom de estopa e usado uma máscara artesanal, que lhe escondia toda a cabeça. Os vizinhos estranhavam um pouco o comportamento do velho. Mas não comentavam nada, visto que a cerveja era de graça. E a orquestra, acompanhada do coro de foliões, atacava de Capiba:

"Você diz que ela é bela
Ela bela sim, senhor..."

Seu Nôzinho não parava de fazer o passo. Atrevido, chegava perto das moças mais bonitas e rugia para fazer graça. Não poupava nem as casadas como a esposa do Sargento Santana. Esse, por sinal, era o único que não se divertia. Estava lá, sentado no meio fio, amuado, agarrado com uma garrafa de cachaça. "Anda desconfiado de que é corno", fuxicava Adelino. E os músicos lembravam o Chacrinha:

"Maria Sapatão, Sapatão, Sapatão..."


Todo ano era a mesma coisa: não satisfeito em pular sozinho, Seu Nozinho convocava as crianças da rua para a brincadeira. Meninos e meninas de todas as idades formavam um pelotão e saíam desfilando com ele de uma esquina a outra. A orquestra era obrigada a acompanhar o hino da agremiação improvisada:

"A La Ursa quer dinheiro
Quem não dá é pirangueiro"


E, enquanto o velhote se divertia, o Sargento Santana chorava suas mágoas com Adelino. Bêbado de fazer dó, o militar falava de sua suspeita, planejava dar cabo de seu suposto rival e perguntava se a sua amada esposa seria mesmo capaz de tamanha traição. "Olha, Santana, não é por nada não, mas podes crer que tem um ´urso' visitando a sua casa quando você sai", sussurrou Adelino, que, por sua vez, também já estava pra lá de Bagdá. E a petizada berravam sem parar:

"A La Ursa quer dinheiro
Quem não dá é pirangueiro"

Como um Otelo embebido em aguardente, o Sargento não teve com evitar que o ódio ofuscasse a razão. Puxou da cintura um revólver e fez mira na máscara de Seu Nôzinho. Só foi preciso um tiro. O alegre velhote caiu duro no asfalto. A orquestra silenciou de repente. Como se não tivesse nada com a história, Adelino gritou:

- Mataram a La Ursa!

*****

A polícia veio e levou o Sargento Santana. O IML veio e levou o corpo de Antenor dos Santos Filho. Os músicos foram embora sem receber o cachê. Os vizinhos, chocados, prantearam a perda do querido Seu Nozinho. Para eles, acabara o carnaval. Todos se recolheram em suas casas. A maioria não conseguiu dormir. De madrugada, quando a rua estava deserta, eles puderam ouvir com clareza os versos bem conhecidos, cantados por uma voz fantasmagórica:

"A La Ursa quer dinheiro
Quem não dá é pirangueiro"

Mesmo morto, Seu Nozinho não desistiu da folia. Os moradores daquela rua no bairro da Madalena acabaram se acostumando com aquela assombração que só era percebida na noite do Sábado de Zé Pereira.

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