quinta-feira, fevereiro 19, 2004

De Paulo Francis em 1987

Eu amo esse Cara:

De Paulo Francis em 1987

"(FSP, 17/12/87) - Nova York - Fui ver "Empire of the Sun", Império do Sol, "de" Steven Spielberg. Li o livro, de J. G. Ballard, em que em geral não toco porque especialista em "science fiction" e cansei do gênero com H. G. Wells (li Ray Bradbury na cadeia, mas não havia mais o que ler). Mas este é diferente. Ballard conta a história de um menino inglês que cai num campo de concentração japonês na Segunda Guerra. Parece que é autobiográfico (Simon and Schuster, Nova York, 279 págs., US$ 16,95). Ballard mostra o garoto traindo os ingleses no campo, passando-se para os americanos e flertando feio com os japoneses (a quem adora como engenhosos). O livro é bom em mostrar que moralidade é uma questão de hábito e de oportunismo e é muito rico na captura do que uma grande imaginação infantil (a do próprio autor, modestamente...) faz de um espetáculo tão forte como já de cabeça feita.
O filme é como comida chinesa. Meia hora depois você está com fome. Spielberg adora máquinas, o que ele faz de um Mustang (caça americano na Segunda Guerra) é o que imaginamos da mulher amada em nossos sonhos. Há maquinária praca, cenas de massa etc. A ambivalência moral de Ballard, nem sombra. Mas não posso dizer que não prestei atenção, o que hoje em dia já é muito (confesso que me confundi com todos aqueles china-paus de "O último Imperador", de Bertolucci. Lá pelas tantas indagava à minha mulher quem era quem). Spielberg quer ser levado a sério. Ganhar o prêmio da academia. Nunca é premiado, ainda que seja 60% da bilheteria do cinema americano, quando está competindo na praça. A mim os grandes sucessos dele não me dizem nada, como "E. T.", que rendeu quase US$ 1 bilhão, ou talvez tenha chegado lá, que sei eu, e esta ênfase de ver as coisas do prisma infantil (ainda que, em "Empire of The Sun", manipulado por um mestre como Ballard) me parece doentia. Spielberg tem 45 ou 46 anos. Que tal um filme geracional? Mas "Empire of The Sun" não é a porcaria habitual. É alto "kitsch".
Bobagem total é "Wall Street", "de" Oliver Stone, diretor do bom "Platoon", que deve ter sido um acidente, porque o anterior, "Salvador", é como aqueles túneis do Rio que antigamente (muito antigamente) chamávamos de "mata paulista". Michael Douglas, protagonista de "Wall Street", tipo inescrupuloso, faz um discurso niilista. Corretor não faz discurso. Diz, como o autuado em flagrante, Ivan Boesky (que pagou uma multa de US$ 100 milhões à justiça e ainda vai em cana), "amo dinheiro, quanto mais melhor e f... os outros". Stone quer mostrar a imoralidade do "inside trading" (saber-se, em miúdos, que uma ação vai subir por um motivo ou outro e comprá-la na baixa. Não me parece muito imoral. Quem resistiria à oportunidade? Só quem não tem dinheiro). A esquerda está com uma extraordinária falta de assunto. E Charlie Sheen (de "Platoon"), francamente. Naquele filme ia mais ou menos porque fazia um pateta que havia sido voluntário na guerra do Vietnã (é como fazer "jogging" na avenida São João), mas neste tem de dar a impressão de que pensa, o que está muito acima da capacidade dele".

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