terça-feira, fevereiro 17, 2004

A mitologia moderna



Gilson Júnior


Corre em paralelo ao engajamento cada vez maior na defesa de Gaia a criação de uma mitologia moderna, mitos retirados do passado distante e corrompidos pela ótica dos ursinhos de pelúcia urbanos, mitos urbanos mesmo, cegos e inexatos.

O primeiro mito interessante é a docilidade de Gaia (mito irmão de seu contrário, a vingança de Gaia, mas este é menos interessante). A terra e o meio ambiente são vistos como dóceis provedores, os animais como coitados bondosos e o homem com o câncer do natural. Com a última afirmação eu até concordo, dado que o bicho homem tem entre seus membros duas castas que são realmente o fim, o Homo Lucrativos e o Homo Acomodadus, esses sim um tremendo câncer. Não concordo, porém, com as duas primeiras. A defesa do equilíbrio do homem com o natural não pode tratá-lo como um irmão bondoso, mas com um irmão exigente. Animais matam e se deixarmos correr soltos, dado que já esculhambamos o equilíbrio todo, jacarés demais destróem as piranhas e lobos demais matam gente e ovelhas, problema velho conhecido, ou seja, se o natural for deixado solto ele engole nós, razão de nossa interferência no natural, simples e pura sobrevivência.

O natural e os animais são vivos e fortes e só não resistem ao jogo sujo das tecnologias mal utilizadas, e é esse nosso combate, nosso combate é conosco. Devemos tratar o natural como ele deve ser tratado, com respeito e clareza. Cuidar do natural é enfrentá-lo e dar a ele o que é seu, nada além. Nosso espaço deve ser cuidado também, ou morremos. O natural não nos provém, ele nos dá apenas o que conquistamos, provedor dá e pronto, o natural exige. Gaia vingadora também é tolice, a terra não devolve, ela apenas deixa o preço dos atos correr, e por isso sem uma árvore menos sombra, pelo menos. O papel do homem é complicado pelo simples fato de sua arma de defesa ser a possibilidade de criar ferramentas, seu instinto é o da criação e a criação é por si só um meio de alteração do natural, seu uso com equilíbrio é que é o pó.

O segundo mito mais interessante é o do bom selvagem. Esse é hilário, e ainda colocam sobre o pobre do Rosseau o crime de sua criação. Em meio ao nosso complexo urbano de culpa pela qualidade horrível de vida que levamos, pelos mendigos nos sinais e pela respiração ruim, invejamos os índios dos mitos e os antigos. Desse jeito negamos à realidade a verossimilhança.

O homem, desde mitologicamente até uma simples visão crítica, representa do natural duas forças complementares. Ele é a personificação do caos destrutivo de da força criadora. Seu papel, independente de cor, raça, credo ou time que torce, é o da manifestação da criatividade na defesa de sua sobrevivência. Algumas tradições indicam que o homem não é realmente um animal, mas uma manifestação física do divino, mas isso é outra história.

Pegando o homem como animal, e suas diversas raças, podemos verificar que este se adapta perfeitamente à sua realidade mais próxima, porém quando amplia seu domínio imediato a outras regiões tende a impor a estas um impacto maior do que o que causava em sua área de origem, dado deu poderio predatório e as possíveis facilidades encontradas no novo local, aliado à sua adaptabilidade impressionante.E estas características são encontradas em todas as variáveis possíveis dentro do bicho homem. Nem o índio e nem o branco tem em si o gérmen da corrupção, sociedades o têm e pra ser mais claro, o poder o têm. Qualquer humano quando munido de poder tende a excluir aquilo que o causa problemas, e esse é o problema do poder, sua incrível capacidade de execução. Considerar o índio como bondoso porque na memória coletiva se criou o mito de sua bondade é negar conhecimento histórico e olhar o mundo com lentes róseas.

O cuidado com as minorias e o olhar às sabedorias antigas com respeito é saber que nada tem uma visão solitária e deve ser cuidado sem que notemos que mesmo o mais fraco tem suas vilezas na relação com o mais forte, a subserviência é uma delas. E a adoção de aspectos culturais como meio de sobrevivência, em detrimento de elementos culturais natos que nos permitem um equilíbrio maior com o todo, é subserviência.

E porque isso tudo acontece? Porque a realidade, ou realidades como bem sabem os xamãs, não admite mitos e lendas, ela admite conhecimento e ação. A realidade é, ela não pede explicações, mas ações que a alteram ou confirmem.

Assim, para um combate mais preciso pela preservação do ambiente, devemos destruir os mitos modernos e encarar a realidade e seus espinhos, optando dentro dela qual caminho queremos, o da omissão colorida por mitos, ou o da ação confirmada pela realização.

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