terça-feira, abril 15, 2003

Fonte: No Mínimo

Johnny volta à guerra



Arthur Dapieve


15.Abr.2003 | Tenho um amigo que passou anos a fio numa cruzada solitária, xerocando sua cópia de “Johnny vai à guerra” e distribuindo entre alunos e amigos que não mais podiam encontrar à venda a velha edição da Civilização Brasileira. Agora, ele não está mais sozinho. A editora Relume Dumará acaba de republicar o romance do americano Dalton Trumbo, na mesma excelente tradução que Elza Viany fez em 1967. Ao menos duas gerações só puderam conhecê-lo indiretamente: ou pelo filme homônimo que o próprio Trumbo dirigiu em 1971 – e que por muitos anos teve a exibição proibida no Brasil pelo regime militar – ou pela música da banda de thrash metal Mettalica nele baseada, “One”, de 1988 – e cujo clip original foi banido da MTV americana por conter cenas do filme.

O que faz de “Johnny vai à guerra” uma obra capaz de gerar reações tão extremadas de amor, como a sua divulgação quase como um evangelho e o hino roqueiro, e de ódio, como os dois episódios supracitados de censura? É a contundência de sua denúncia da imbecilidade dos conflitos humanos em nome de ideais indefinidos, de palavras bonitas como “democracia” e “liberdade” que não fazem mais sentido para os jovens que apodrecem embaixo da terra. Seu protagonista, John Bonham, 20 anos, está pior do que morto: apodrece em cima da cama de um hospital de campanha americano na França, ao final da Primeira Guerra Mundial. Perdeu os braços, as pernas, a boca, o nariz, os olhos e as orelhas. Não enxerga, não fala, não ouve, não pode se mexer. Logo, não pode nem se matar. Tudo o que conserva é o tato nas partes do corpo que lhe restam e o pensamento.

A capacidade de pensar acaba se tornando uma espécie de maldição para o soldado entrevado. É só o que pode fazer. Nos momentos em que está acordado, e não dormindo, desmaiado de pavor ou em delírio, momentos que, aliás, não consegue precisar de fato se está acordado ou sonhando, Johnny vai avaliando a extensão dos seus ferimentos, calculando como poderá fazer para se comunicar ou para se matar, lamentando não poder suspender a respiração, fazendo profissão de fé de que aquela ratazana de trincheira que lhe está roendo o corpo não passa de um pesadelo e de que aquele enfermeira que cuida da sua higiene e prazerosamente toca o seu corpo, sim, é de carne e osso.

Sem recorrer a vírgulas, Trumbo conta essa parábola de incrível privação sensorial e existencial na terceira pessoa, confundindo-se com a primeira pessoa do personagem apenas nas comoventes horas em que este pensa, meio num monólogo sobre as memórias da vidinha boa e besta no Colorado e na Califórnia, meio num fluxo de consciência sobre a impotência de sua condição. Sem poder ver, o pedaço de carne pensante enxerga mais longe do que os patriotas vivos. Sem poder falar, discursa com mais coerência do que os políticos falastrões. O que ele pensa-diz tem seu prazo de validade renovado por mais uma guerra idiota como esta que acabamos (acabamos?) de assistir entre EUA/Grã-Bretanha e Iraque. Posta no papel pela primeira vez em 1938, um ano antes do início oficial da Segunda Guerra Mundial, a verve pacifista de Trumbo antevê para além desse conflito a ameaça de novas matanças perpetradas em nome da democracia e da liberdade.

“Vejamos a decência”, pensa-diz Johnny com suas ataduras. “Todo mundo disse que a América fazia uma luta pelo triunfo da decência. Mas a idéia de decência de quem? e decência para quem? Explique-se e diga-nos o que é decência. Diga-nos o quanto melhor se sente um homem decente morto do que um indecente vivo. Faça uma comparação use fatos como casas e mesas. Faça isso com palavras que possamos entender. E não nos venha falar em honra. A honra de um chinês ou de um inglês ou de um negro africano ou a de um americano ou de um mexicano? Por favor todos vocês sujeitos que querem que a gente lute pela preservação de nossa honra digam-nos que diabo de coisa é a honra. É a honra americana para o mundo todo por que lutamos? Talvez o mundo não goste disso. Talvez os nativos das ilhas do Sul prefiram a honra deles.”

Troque “nativos das ilhas do Sul” por “árabes em particular e muçulmanos em geral” e, vualá, eis algumas palavras que deveriam ser emendadas à Constituição dos EUA.

Contudo, é interessante como a introdução que Trumbo escreveu em 1959 (com um adendo em 1970) serve para desmistificar certos aspectos de “Johnny vai à guerra” e dar um contexto a seu teor pacifista. O escritor nega que o livro tenha sido banido pelo Exército e conta como, conforme a escala da Segunda Guerra Mundial aumentava e os exemplares da primeira edição sumiam das livrarias, o acesso a ele tornou-se “uma questão de liberdades cívicas para a extrema-direita norte-americana”, isolacionista e/ou pró-nazista. “Se, no entanto, tivesse sido banido e a mim fosse dado saber, duvido que houvesse protestado com muita força”, afirma. “Há ocasiões em que talvez seja necessário que certos direitos individuais cedam aos interesses da comunidade em geral. Sei que se trata de um pensamento perigoso e eu não gostaria de levá-lo ao extremo, mas a Segunda Guerra Mundial não foi uma guerra romântica.”

Trumbo estava longe de ser um falcão, lógico. Era sensato. Trabalhou basicamente como roteirista, embora tenha escrito seis romances, “Johnny vai à guerra” incluído. Em Hollywood, ganhou um Oscar por “Arenas sangrentas” (1956). Na ocasião, porém, não pôde recebê-lo porque assinou o trabalho com o pseudônimo de Robert Rich – porque, como tantos outros artistas de esquerda ou mesmo de centro, estava na lista negra do macartismo. Só pôs a mão na estatueta em 1974, dois anos antes de morrer, aos 70. Entre outros, assinou ainda os roteiros para “Exodus”, “Spartacus” e “Papillon”, num total de 61 textos. Trabalhou como ator em três filmes. Como diretor, tem a seu crédito apenas “Johnny vai à guerra”, mas que crédito, que crédito... Um belo e terrível testemunho do século no qual – até o fechamento desta edição – mais se matou e se morreu em guerras.


dapieve@nominimo.ibest.com.br

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