terça-feira, março 16, 2004

Onze de março: terror na Europa

Mário Sérgio Conti

13.03.2004 | Às oito e meia da manhã, quando comecei a trabalhar, e o número de mortos ainda estava na casa dos sessenta, três ministros espanhóis já haviam responsabilizado o ETA pelos atentados de Madrid. Não existiam provas. Só indícios, deduções: quinze dias antes, a Guarda Civil havia detido a duzentos quilômetros de Madrid dois terroristas bascos com uma camionete com quinhentos quilos de explosivos. E antes, na véspera de Natal, dois outros bascos foram presos numa estação de trem em Madrid, cada um com cerca de dez quilos de explosivos.

Ao longo do dia, dirigentes do Batasuna, o partido (colocado na ilegalidade) que serve de porta-voz político do ETA, negaram peremptoriamente qualquer envolvimento de militantes bascos no atentado. Depois, uma suposta mensagem da Al-Quaeda chegou a um jornal árabe da Inglaterra. E, por fim, encontrou-se nos arredores de Madrid uma camionete com sete detonadores e uma fita cassete na qual se recitavam versículos do Corão.

A possibilidade dos atentados de Madrid terem sido feitos por militantes muçulmanos também era plausível. Porque o governo espanhol apoiou a ocupação do Iraque. Porque o onze de março ecoa o onze de setembro. Porque, em maio de 2003, terroristas de um grupo islâmico explodiram a Casa da Espanha em Casablanca, no Marrocos, e mataram umas vinte pessoas.

Dois dias depois da carnificina, continuava o mistério: quem colocou as bombas nos trens de Madrid? Os departamentos estatais de combate ao terrorismo, com suas estruturas cada vez maiores, eram incapazes de dar uma resposta. E os autores se mantinham calados. Nesse mistério e nesse mutismo está um dos emblemas do terror. Para além das reivindicações, o terror contemporâneo é um fim em si mesmo. Ele visa aterrorizar.

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O terror veio para ficar. Com o avanço tecnológico, as bombas são cada vez menores, mais potentes, de manipulação mais simples e até mais baratas. Uma meia-dúzia de gatos pingados pode provocar um estrago enorme.

Como método de libertação nacional, o terrorismo às vezes é eficaz. A Frente de Libertação Nacional conseguiu a independência da Argélia a poder de, em larga medida, ataques terroristas. O Hizbolah, o Partido de Deus, expulsou o exército israelense do Líbano com uma campanha de bombas.

Às vezes, não. Como na África do Sul. Como na República da Irlanda. Como em tantos outros lugares.

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O que não significa que seja irracional, patológico, como quer fazer crer a direita. Nem que suas causas sejam evidentes, como diz a esquerda que funciona com base no piloto automático.

No caso do terrorismo islâmico, a direita diz que ele é produto do fanatismo religioso, que retira sua força de raízes culturais que não são as corretas, as cristãs-ocidentais. Já à esquerda são muitos que o explicam por meio do massacre da nação palestina, da miséria secular em que são mantidos povos inteiros, dominados por ditaduras teocráticas apoiadas até os dentes pelo capital e pelo Império.

Mas e no caso do País Basco? Lá, as raízes culturais e históricas são as mesmas da Espanha e de toda a Europa, e o fanatismo religioso inexiste. Igualmente, não há miséria nem opressão política. Ao contrário. O País Basco é rico. Não há termo de comparação de San Sebastian, Bilbao e Biarritz com Kabul, Ryad, Khartum. O País Basco é também a região espanhola com maior grau de autonomia: tem administração, polícia e parlamento próprios, que recolhem impostos e ensinam o idioma nativo nas escolas. E, no entanto, o nacionalismo e o terrorismo basco existem.

Avalia-se que 40% do País Basco quer a independência. É pouco, pois uma de suas tradicionais províncias espanholas, Navarra, já disse num plebiscito que se quer como parte da Espanha. E as três províncias francesas não querem ouvir falar de independência.

É pouco também porque, na última eleição da qual pôde participar, o Batasuna teve 200 mil votos – numa população de quatro e num eleitorado de três milhões.

Mas, em termos de terrorismo, 200 mil é uma base social formidável. É gente de sobra para dar origem a uma organização como o ETA. Os serviços de segurança espanhóis (os mesmos que não conseguiram impedir o atentado, e que há três meses garantiam que a organização estava acéfala e moribunda) avaliam que o ETA conta com menos de quatrocentos militantes. Com esse punhado de gente dá para perpetrar assassinatos em massa como o de Madrid.

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As reações imediatas ao onze de setembro e ao onze de março mostram as diferenças entre americanos e europeus. Poucas horas depois das bombas, em dezenas de cidades espanholas, inclusive em Madrid, já havia manifestações espontâneas de protesto contra a barbaridade. No dia seguinte, o país parou às onze da manhã e todos foram para as ruas. Às sete da noite houve manifestações colossais, convocadas pelo governo, pelos partidos de oposição e pelas centrais sindicais. Todas as manifestações tinham caráter cívico e político, simbolizavam a unidade nacional. Os espanhóis se comportaram como cidadãos, como protagonistas de sua história.

Depois do onze de setembro, não houve nenhuma manifestação de massa, política, nos Estados Unidos. Houve atos de reverência aos mortos, e não afirmações coletivas de repúdio à agressão e de afirmação nacional. Os americanos se comportaram como espectadores, como vítimas atônitas e desamparadas.

Pouco depois das explosões, o primeiro ministro José Maria Aznar apareceu em público e falou aos espanhóis. O símbolo maior da unidade nacional, o rei Juan Carlos, visitou os feridos em hospitais, acompanhado da rainha, do delfim e de sua noiva. Também foi à televisão para pedir unidade e combate ao terrorismo. O que fez George W. Bush? Sumiu, escondeu-se durante boa parte do dia porque tinha medo.

Na seqüência, o governo americano invadiu e ocupou o Afeganistão e o Iraque. Internamente, restringiu os direitos democráticos. O que fará o governo espanhol? Bombardeará o País Basco? A Arábia Saudita?

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O onze de setembro foi marcado pela irrealidade. As imagens dos aviões se chocando com os prédios, e deles ruindo em meio a nuvens de poeira e fumaça, pareciam saídas de tantos filmes americanos, repletos de fantasias de morte e destruição abstrata. A imprensa americana não publicou fotos de cadáveres ou de pessoas saltando dos edifícios. Suas fotos do massacre foram alegóricas. As vítimas desapareceram sob toneladas de concreto, ferro, vidro, detritos – desapareceram de súbito, tornaram-se imateriais.

O onze de março foi dolorosamente real, próximo. As fotos dos feridos, dos vagões desventrados, não pareciam cenas de filmes. As estações, os trens, as pessoas encapotadas indo para o trabalho – a paisagem era semelhante à de dezenas de cidades européias. Os feridos se escoravam em postes. Os mortos jaziam no chão. Depois foram colocados em sacos negros. As fotos dos jornais mostravam a dor. Todo europeu se reconheceu, se viu na manhã macabra de Madrid.

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A centésima-nonagésima-nona vítima da matança em Madrid foi um bebê de sete meses. Ela morreu em nome do quê?



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