terça-feira, fevereiro 10, 2004

Allors enfants do Ipiranga às margens plácidas

24 de Julho de 2003

Arnaldo Allemand Branco



De Gaulle disse que o Brasil jê nê pá um país seriô. Talvez mudasse de idéia se visse a campanha que moveram os gaúchos ofendidos pelas piadas de veado do Casseta e Planeta. Ultimamente não estamos achando graça nem do desempenho do Rubinho - e isso é grave. O que De Gaulle provavelmente quis dizer é que o Brasil não leva nada a sério. Por exemplo: todos sabem que há racismo no país, mas identificar um gesto racista é muito difícil por aqui, uma vez que este vai estar imerso naquele ambiente de galhofa, de deixa disso, de não é bem assim típico do Brasil. Lá fora, se leva racismo a sério: os caras fazem organizações paramilitares com carteirinha e o caralho. Outro exemplo: a grande contribuição do Brasil para a História do Direito Ocidental, que é a lei de fato, em oposição a lei de direito. Aqui uma lei só vale se a gente vai com a cara dela. E assim por diante. Não levamos nada a sério.

Mas uma coisa a gente trata como se fosse a Virgem de Lurdes: a Seleção. E eu acho isso absolutamente positivamente do caralho. Não consigo entender porque sujeitos como Sérgio Noronha e o Galvão Bueno (dois exemplos que me ocorrem) sempre repetem a ladainha "tem que parar com essa história de que a seleção é a Pátria de Chuteiras" (reparem que a frase só sai daquelas cabeças coroadas nas derrotas, visto que saem do sério e quase lambem a bandeira - Galvão especialmente - quando os canarinhos ganham, permitindo a eles repetir o bordão preferido: "esse é o futebol brasileiro!"). Não sei porque, mas a frase "O Brasil é a Pátria em chuteiras" é muito impopular entre os cronistas esportivos. Deve ser porque foi cunhada por um gênio e a maior parte dos colunistas do setor são débeis mentais. Parodiando outra frase: a crônica esportiva está para a crônica assim como o espírito esportivo está para o espírito.

Já ouvi o hino nacional tocar depois da transmissão da absolvição de um brasileiro que estava sendo julgado nos Estados Unidos por assassinato. Já li matérias gigantescas cheias de orgulho nacional porque algum valoroso cantor brasileiro ganhou uma notinha no New York Times. Já vi sujeitos que trabalham como sub do sub do sub em um projeto importante nos EUA (pode ser na NASA ou na Pixar) ganhar destaque na TV como se fossem os pais da aviação. E todas as vezes o ridículo da situação piscou em neon. Menos quando o assunto é seleção brasileira. E por quê? Porque pátria é exatamente isso: um pano colorido que escolheram para representar o lugar onde você nasceu. Um time de futebol como nosso representante máximo está muito bom pra nossa cara, e é bem melhor que um exército.

Ei, calma, eu sou Brasil, eu sou, vou dar porrada eu vou e ninguém vai me segurar - nem a PM! Mas se pararmos pra pensar, é difícil não confundir o amor pelo país com uma paixão "menor", como a clubística. Nascidos na Itália e na Espanha, por exemplo, países com cicatrizes no lugar de fronteiras, tem sentimentos misturados em relação ao time que os representa - Maradona já conseguiu que os napolitanos se calassem em um jogo da Itália contra a Argentina, e pudemos ver naquele amistoso contra a Catalunha a imensidão de cartazes com slogans separatistas. Bem: Itália e Espanha foram garfadas na última copa - e aí não teve napolitano, siciliano, catalão ou basco - todos se uniram contra os juízes em um lindo grito de "FILHO DA PUTA"!

Somos a pátria de chuteiras, sim. A minha é tamanho 40, e tenho representado com garbo o país nos campos de pelada - e tenho os arranhões para provar.




arnaldo@alittlepiece.com

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