quinta-feira, dezembro 26, 2002

O melhor CD agora em DVD



Arthur Dapieve

26.Dez.2002 | O melhor disco brasileiro de 2002 acaba de ganhar sua versão audiovisual. “Longo caminho”, dos Paralamas do Sucesso, volta à praça em DVD. Não é exagero escrever que, a rigor, ambos são a mesma coisa, só em sons ou em sons e imagens. Porque “Longo caminho”, o DVD, não é um documentário sobre “Longo caminho”, o CD – é o documentário sob o álbum. O DVD é o CD filmado, filmado em seu processo de criação, em seus ensaios, em sua gravação, em sua mixagem, filmado não como produto acabado, mas como obra-em-progresso. O diretor e roteirista Andrucha Waddigton e os editores e roteiristas Sergio Mekler e Quito Ribeiro sacaram que o CD já era sua própria história – e que qualquer história da história seria demais, seria supérflua. As entrevistas com Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone servem tão-somente para deixar isso claro.

“Longo caminho” não se tornou o melhor disco de 2002 por causa das circunstâncias miraculosas em que pôde ser realizado – a sobrevivência física e criativa de Herbert ao acidente de ultraleve de 4 de fevereiro de 2001, que vitimou sua mulher, Lucy Needham Vianna. Não. Esqueça isso e se prenda à música dos Paralamas no seu 15º álbum. Ela é forte, agressiva, delicada, comovente, verdadeira, original. Num ano em que Chico Buarque nada lançou, em que Caetano Veloso embarcou num projeto paralelo com Jorge Mautner e em que Gilberto Gil regravou Bob Marley, sem falar em trocentas releituras e álbuns ao vivo de artistas e grupos, o CD dos Paralamas não teve concorrente. (Apesar de todo o meu respeito e entusiasmo pelo primeiro CD de seu Argemiro Patrocínio.) Com sentimento e sutileza, o DVD da Conspiração Filmes ratifica isso: a sua estrela é a música, não o drama pessoal de Herbert, que só surge para explicar a circunstância de seu (re)nascimento.

Quando lançaram o CD, no final de setembro, os Paralamas contaram que o disco, todo composto antes da tragédia, foi pensado quase como o roteiro de um média-metragem, com menos de 36 minutos. “Longo caminho”, o documentário, não chega a ter vinte minutos a mais. E – conquanto eles incluam os papos, sempre rápidos, e um trecho de “Alagados”, tocada no estúdio da casa de Herbert, a pedido de sua filha Hope, então, já no final de 2001, com 6 anos – certamente tira boa parte de sua força do “roteiro original”. A porrada da faixa inicial, “O calibre”, e a reflexiva faixa final, “Hinchley Pond”, demarcam um território emotivo bastante diverso. Por isso, Waddington filma cada uma das 11 músicas do novo álbum de maneiras distintas, na quais, mesmo sendo o cenário sempre um estúdio, o olho nunca se cansa. O que ele faz com “Amor em vão”, em particular, é brilhante. Com a banda fazendo overdubs em São Paulo, a parafernália tecnológica se torna co-participante das emoções cantadas por Herbert, oferecidas em inglês para seu grande amor.

Cabe ressaltar o incrível salto qualitativo que o letrista Herbert deu em 20 anos de carreira. Os discos mais recentes dos Paralamas, bem como seus três álbuns solo, já comprovavam isso. No entanto, “Longo caminho” vai mais longe. O que dizer de “O calibre”? “Por que caminhos você vai e volta/ Aonde você nunca vai/ Em que esquinas você nunca pára/ A que horas você nunca sai/ Há quanto tempo você sente medo/ Quantos amigos você já perdeu/ Entrincheirado, vivendo em segredo/ E ainda diz que não é problema seu” constituem alguns dos versos mais lúcidos e poderosos sobre a crise social brasileira. Em outra direção, o que dizer da faixa seguinte, “Seguindo estrelas”? “Sigo palavras e busco estrelas/ O que é que o mundo fez/ Pra você rir assim/ Pra não tocá-la, melhor nem vê-la/ Como é que você pôde se perder de mim/ Faz tanto frio, faz tanto tempo/ Que no meu mundo algo se perdeu/ Te mando beijos/ Em outdoors pela avenida/ Você sempre tão distraída/ Passa e não vê, não vê” tratam de frustração amorosa com grande sensibilidade.

Até “La estación”, em espanhol, idioma que ele passou a cultivar a partir da excelente recepção da banda na Argentina, tem belos achados, como “yo sé porque lloras/ Nunca es facil tomar la decisión/ Alguién te hace falta en la mañana/ Y a alguén le rompiste el corazón.” O documentário mostra Herbert cantando tudo isso sempre com a devida emoção, apesar de não estar sobre um palco. O DVD também inclui, à parte, três faixas de bônus. O videoclipe de “O calibre”, que, na verdade, é uma colagem de “melhores momentos” de todas as imagens de “Longo caminho”. O registro da velhíssima – embora inédita em disco – “Pingüins”, feito numa das pequenas apresentações que os Paralamas fizeram para calibrar sua volta oficial aos palcos, num show especial gravado para o “Fantástico”. E a versão multiângulo de “Flores no deserto”, na qual o espectador pode editar em casa como quiser: assistindo apenas a Herbert cantando à guitarra, apenas a Bi compenetrado em seu baixo ou apenas a Barone cheio de braços em sua bateria.

A única música de “Longo caminho” não composta por Herbert é tão emblemática da trajetória dos Paralamas do Sucesso quanto as outras. “Running on the spot” é de Paul Weller, dos tempos do Jam, uma das bandas mais importantes (para além) do movimento punk inglês. Weller nunca se conformou com colegas de geração que ou se acomodaram esteticamente ou traíram seus ideais libertários. Dissolveu o Jam, fundou o Style Council, distinto, soul toda a vida, embarcou numa carreira solo de constantes reviravoltas. Nunca criou limo. Os Paralamas seguem a mesma cartilha. De todas as grandes bandas de rock surgidas no Brasil nos anos 80, sempre foi a mais inquieta, a mais preocupada em não se tornar somente um monumento ao próprio passado. Já são duas décadas de mudanças temáticas, formais, existenciais. A energia com que Herbert, Bi e Barone atacam a canção de Weller em “Longo caminho”, o DVD, não deixa dúvidas que eles (não) se reconhecem na letra sarcástica, uma crítica pesada ao aburguesamento: “We’re just the next generation of the emotionally crippled” (Somos apenas a próxima geração de aleijados emocionais).

Eles não, eles não.






dapieve@nominimo.ibest.com.br


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